terça-feira, 14 de dezembro de 2010
À moda do Pessoa
Serviram-me amor
Em colher de chá.
Mas como se pode servir amor em colher,
E ainda por cima de chá?
Amor não é homeopatia,
Não se usa em conta-gotas.
Disse ao garçom que amor não se serve em porção tão pequenina,
Porque ademais nem é invenção francesa...
Respondeu-me que era o que tinha na cozinha,
Era tudo que podiam me ofertar...
Amor em colher de chá!
Saí feito um foguete daquele restaurante
Tão metido à besta
E estou procurando um lugar onde se possa
Comer o amor com as mãos,
Até se poder lambuzar.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Sentido
Ouvia vozes ao acordar, que chamavam docemente. Desperta. Levanta-te e anda. Não olhe pra trás.
Por fim, acordou. E agora os borrões se tornavam cada vez mais objetos circunscritos, limitações da realidade que lhe parecia muito maior. Mas era bom reencontrar os objetos, olhar para fora e poder enxergar com coragem que uma cama era apenas e imensamente uma cama. Saudou cortinas, tapetes, armários.
O momento de levantar-se foi festa, quando os braços se libertaram do leito e puderam esticar-se em gozo de espreguiçar. O corpo, seu amigo. Tinha se esquecido dele e até mesmo o atacado, como se fosse seu grande mal. Era o contrário: seu corpo a salvava daquele abismo tão pungente da falta de bases. Foi por isso que, antes de levantar-se, fincou bem os pés no chão e sentiu o frio do piso, preenchendo toda a sola e os espaços entre os dedos. Logo os pés ficaram roxos e desandou a espirrar.
Somente seu corpo, fábrica de secreções e desejos, poderia lhe dotar de tantos gozos. Espirros, sono, orgasmos. Corpo tão querido quando pedia, por meio de barulhos e protestos, um pouco de alimento, de água, de calor. Tão bom ficar arrepiada. Onde estava não havia arrepios ou tremores. Era um só ondular das vagas violentas do vazio. Vazio pleno de sentimentos.
Preferia ficar boiando entre as sensações. Gostava de tirar férias do espírito e poder consorciar-se com a alma. E então bastava sentir frio, fome, sono. E poder satisfazer os desejos do corpo a libertava.
Pentear os cabelos, por exemplo. Um repertório incrível para os sentidos: o cheiro de xampu nos fios, a maciez que eles tinham perfilados, o brilho. Eram bonitos sob o sol, gostava de ver como os raios o atravessavam e lhe davam uma aparência diáfana. Roubava do sol artifícios de beleza.
O banho era o momento de que mais gostava. Água quente, som do chuveiro trabalhando, vapor de água. Cheiro de sabonete, xampu, a toalha roçando o corpo cheio de respingos. Era o momento de tocar sua pele, sentir sua firmeza e ser feliz por desfrutar da fugacidade. Saber-se provisoriamente jovem aumentava sua vitalidade.
O festim das roupas. Escolher entre seda, algodão, renda. Perfume. Batom, deslizando pelos lábios que tantas vezes gostava de tocar com as pontas dos dedos. Borrou-se de cores e cheiros porque podia, porque estava viva e porque desejava sempre muito, sempre tudo, sempre mais.
E, pegando a bolsa, abriu as portas há muito trancadas e ousou andar novamente sob o céu.
domingo, 7 de novembro de 2010
Escolha
Havia duas árvores, em um quintal, bem próximas uma da outra. A da esquerda era um jacarandá e a da direita, uma jabuticabeira. Entre elas, estava o dono do quintal, um jovem de 25 anos.
Ele olhou para o jacarandá, a árvore mais antiga. Quando chegou àquela casa, a árvore já estava lá e se destacava em um quintal que, de resto, estava abandonado. Amou desde o início aquela forma retorcida e cheia de florezinhas roxas que pareciam trompetes. A casca da árvore, naquela época, era lisa, e as florações eram exuberantes a cada primavera.
A sombra não era muita, mas o então menino passava horas sob a copa rala, encantado com a sua propriedade. Brincava de gude, caçava formigas, colhia folhas caídas para o seu álbum... Permanecia a maior parte da tarde junto ao jacarandá.
No inverno, quando a árvore ficava nua e ressequida, o menino enfeitava-a com os badulaques que fazia: pedaços de retalho e fitas enroscavam-se nos galhos e papel crepom era enrolado no tronco. Assim, sua árvore querida nunca deixava de ter beleza e encanto.
Passou-se muito tempo. O menino cresceu, tornou-se um jovem de robustez moral e inúmeras florações internas. Agigantava-se em graça e conhecimento. O jacarandá não parecia mais tão alto e ele conseguia abraçar sem problemas o tronco.
Era o jacarandá que diminuía. Apequenava-se nas florações, que vinham menos esfuziantes e mais tímidas. A casca começou a enrugar e escurecer. O ex-menino, no entanto, tinha-lhe o mesmo carinho e até mais, pois conhecia tão a fundo sua amada árvore que podia, mesmo sem nunca tê-las visto, saber exatamente o aspecto das raízes.
Nesse meio tempo, o quintal havia recebido outros habitantes. Vieram roseiras, um limoeiro, uma porção de margaridas e uma jabuticabeira, plantada a poucos passos de seu jacarandá. Não lhe dava maior atenção, pois demorou para a arvorezinha crescer.
Um dia, porém, sentado à sombra da árvore mais velha, o jovem notou na que estava defronte umas bolotinhas pretas, maduras, cheias de viço e brilho. Eram as primeiras jabuticabas! Cobriam todo o tronco fino da planta e convidavam a boca a molhar-se de vontade.
O jovem ficou tentado a provar aqueles olhinhos morenos. Nunca havia comido daquelas frutinhas. Sua árvore não tinha frutos comestíveis, embora as cascas duras que os contivessem tivessem sido objeto de muitas de suas brincadeiras infantis.
Mas sentia agora que o jacarandá ficara lhe devendo esse prazer. Nunca tinha colhido frutas no pé, improvisando na camisa um cesto rústico que abrigasse suas doces conquistas. Não se lambuzara, não ficara com dor de barriga de tanto excesso e tanta fartura.
Não quis de imediato provar as jabuticabas. Esperou um entardecer e, um tanto a medo, furtou a sua primeira bolinha preta. Fechou-a com força entre as mãos e, ainda a medo, foi estourá-la entre seus dentes quando já estava dentro do seu quarto.
Ploc! Nunca havia sentido uma coisa semelhante em sua boca. Romper aquela fruta era quase um ritual, e percebeu que aquela pequena fenda que se abrira na casca, deixando a polpa curiosa aparecer e escorrer pela garganta, era sinônimo de rupturas maiores.
Não deixou mais de colher as frutas. Ainda precisava, no entanto, esconder-se no seu quarto para concentrar toda a delícia daquele instante. Voluptuosamente escolhia quantidades cada vez maiores, porções negras que se amontoavam agora nas duas mãos, que já não podiam ser fechadas.
Não tinha mais olhos para o jacarandá. No entanto, sabia-se agradecido pelos momentos todos de sua meninice, em que lhe fora um grande amigo. A jabuticabeira acenava sempre, mas as raízes do jacarandá pareciam ter se infiltrado em seu próprio coração.
Entre as árvores, o dono do quintal. À sua esquerda, a solidez do passado, a soma de sua história. À sua direita, o susto, o gozo, as possibilidades.
Sabia que era necessário escolher. Não podia possuir duas árvores, não saberia viver esse trânsito, ainda que fossem necessários poucos passos. Seu corpo finito só podia abrigar-se em uma das sombras. Uma árvore oferecia contemplação, ornamento. A outra podia ser trazida para dentro de si, no deleite dos seus frutos.
Era hora. O ex-menino já sabia. Acariciou a casca vincada da sua árvore mais antiga, despedindo-se com um abraço. Enterrou a seus pés umas tantas fitas, moedas, gudes e outras quantas miudezas. Antes de cobrir seus tesouros com um pouco de terra, ousou procurar as raízes da mais velha, tocá-las por uma vez. Não as encontrou, tão fundas estavam. Regou a terra ao redor com suas lágrimas, pela última vez. Abraçou o tronco, colheu uma derradeira flor roxa e passou a cobrir o chão do quintal com incontáveis cascas pretas.
sábado, 6 de novembro de 2010
É um inferno o que passei a viver. Não podem ver-me sentada, a ver um filme estúpido qualquer. Não me deixam ficar distraída, tomando o café e simplesmente olhando bestificada a paisagem. Não permitem que eu leia um capítulo do que quer que seja até o fim.
Despem-se. Fazem barulhos, estalando a língua. Mostram-me seus sons, seus gemidos. Obrigam-me a olhar as danças obscenas de suas orquestras de letras. Piscam, gracejam, gargalham. As palavras gozam. Vibram, ondulam, cintilam. Riscam os céus, enquanto tento pentear os cabelos.
Mas têm predileção pelos meus banhos. E é com angústia que as vejo escorrer junto com as rajadas quentes do chuveiro. Tentam afogar-me e fazem do meu asseio uma tortura, e é com estardalhaço que saio correndo a pegar qualquer papel e tinta, que se borrem com um tanto de água, doce e salgada.
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Fujam das palavras. Façam filhos, viagens, compras. Não olhem para os lados. Evitem muito especialmente olhar para o céu e enxergar nos fenômenos atmosféricos e nos corpos celestes qualquer emanação de poesia. Recomendo especial atenção com velórios, nascimentos e literatura francesa.
Importante: nunca se apaixonem. Isso é um conselho e uma exortação. Não cometam a imprudência de olhar no fundo dos olhos de alguém. É ali que elas esperam, prontas para saltar diretamente para seus lábios e dedos, provocando uma comichão que azul de metileno algum curará.
Ouçam o despertador, interrompam o sonho onde estiver, essa incubadora de palavras. Sufoque-as antes que possam dar o primeiro choro, ou elas farão com que se acorde na alta madrugada, com os olhos vidrados e as mãos tremendo a exigir qualquer superfície, seja um guardanapo ou um bilhete da loteria.
Virginia Woolf. Mário de Sá-Carneiro. Ana Cristina César. Não sejam como eles. Não sintam como eles. Não escrevam como eles.
Ou escrevam, escravos.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Dia dos Mortos
Há mortos que habitam esse outro tipo de condomínio, e mortos que seguem morando no mesmo lugar, embora pareçam estar a muito mais que sete palmos de terra. Há mortos com lápides, lousas que inscrevem datas de nascimento e morte. Outros mortos jazem em qualquer página de agenda, bilhetes, fotos. Mortos mais do que vivos, para os quais não se levam flores, mas que já deixaram flores, hoje ressequidas, restos mortais que nunca encontram a decomposição.
Com alguns mortos, se pode tentar estabelecer contato; de outros, nenhum médium poderá psicografar uma palavra. São mortos do silêncio, habitam as criptas da indiferença e nos fazem comungar da frieza e da gelidez de sua mansão de ódio.
Abro sua urna, onde estão as cinzas de quando éramos vivos. Todas aquelas letras já borradas de minhas lágrimas são como vermes que teimam em entrar em minha carne. Quem se decompõe sou eu, ao tentar soprar sobre nós alguma alma, alguma vida.
O meu morto continua mudando, e está tão morto que talvez eu não pudesse reconhecê-lo. Tento reconstruir você, como se fosse Frankenstein. Sua pele morena, suas costas largas, suas pernas finas, seus cabelos anelados. Falta, no entanto, a faísca que atinja e ilumine esse momento, que faça com que você salte novamente para meus braços e sorria. Seus ossos, luz da minha vida, nunca mais os verei se exibindo para mim em forma de dentes. Meu morto se recusa a mostrar para mim sua parte mais íntima.
Acendo uma vela para todos os santos celebrados neste dia. Inclusive para aquela Nossa Senhora Desatadora dos Nós, cujo santinho você veio me ofertar um dia, quando ainda se preocupava com a minha salvação. Esse nó, no entanto, que aperta todo o meu tórax e me divide em duas, a cabeça que não para de girar e o corpo paralisado, esse nó ela nunca poderá remover. Nenhum santo me dará a redenção.
Amanhã os vivos terão a consolação de se reencontrar com seus finados. Entre eles, uma fina camada de terra e de além. Você, meu morto querido, vai continuar chovendo dentro de mim, mesmo depois que o feriado acabe e as nuvens se dissipem. Vai continuar mostrando que não precisa de minhas rezas, flores ou velas. Seguirá cada vez mais feliz, mais confiante, mais reconstruído. Sua nova vida já começa, uma nova infância se inaugura.
Eu, no entanto, continuarei a ser aquele anjo de mármore, cada vez mais escurecido pelo tempo, que se debruça sobre o seu jazigo.
Descanse em paz, amor, que eu permanecerei sendo o seu cemitério.
porque não posso morar em mim.
Sinto inveja de quem se consome por inteiro.
Eu não.
Fica sempre esse braseiro como uma fogueira confiante
dentro do mais bruto inverno,
crepitando, crepitando.
Meus pensamentos são banais como
tudo o mais que é complexo.
Sinto turvas minhas palavras, e não as posso beber.
Quem goza dentro do meu verbo?
Há noites tão solitárias em minha mente que somente
o lobo inconformado dos meus remorsos pode andar
por entre tantas ervas amargas.
Os relógios me mostram que objetos podem ser
incalculavelmente objetivos.
Por que existem tantas prisões que não me aceitam?
Os carcereiros desviam o olhar,
fingem alheamentos, esperam minha sombra passar.
Quando chegar o grande dia
em que tudo tenha um sentido
e haja toda a redenção
já terei partido,
me partido em mil pedaços
dentro da minha irresoluta e irrefreável
imperfeição.
5/9/10
domingo, 31 de outubro de 2010
Era preciso
ERA PRECISO
Navegar é preciso/Viver não é preciso.
Era preciso causar dor. Era preciso se causar dor. Era preciso rasgar fotos, destroçar o coração, pôr fogo nos móveis. Era preciso tomar veneno, sentir as chagas purulentas se abrirem, passar fome severa, sentir hipotermia. Era preciso se jogar da ponte, deixar um bilhete no bolso, ser resgatado e socorrido com uma respiração boca a boca. Era preciso sentir dor de dente, dever o aluguel, ter a luz e a água cortadas. Era preciso cortar a pele, fazer vários cortes no antebraço, furar a almofada com a tesoura. Era preciso beber álcool, vomitar e entrar em coma alcoolico, dirigir embriagado às quatro da manhã. Era preciso entrar para a igreja, chorar em convulsão, temer as penas do inferno. Era preciso passar pelo inferno, sentir o fogo interno, sentir o frio imponderável. Era preciso, era muito preciso, gostar de alguém. Era preciso levar fora, levar bolo, levar tiro. Era preciso montar guarda na porta da casa do amor, chorar com os parentes do amor, ser expulso a pontapés pelo amor. Era preciso parar no hospital algumas vezes, ficar no soro de tanta saudade, não querer comer e sentir a levitação que vem do jejum. Era preciso ser traído, era preciso flagrar a traição, era preciso ouvir as desculpas. Era preciso perdoar, era preciso ficar confuso, era preciso entrar
Daniela Asth
Descoberta
Ela o notava pelos rostos alienígenas dos passantes, pelo ar seco que não comunicava brisa, pelo duro bater dos dentes que expunham ameaças e dentaduras.
Cinco minutos de atraso. Era só, mas ela, em sua impossível inocência de mocinha, não via, com seus olhos de estátua grega intocada, que aí estava todo o perigo. Ela não o conhecia, não haviam sido apresentados, no templo marmóreo onde vivia.
E agora esses olhos, que a faziam recuar e gemer sem razão. E ela, filha de um sereno classicismo, agitava pela primeira vez seu coração árcade, em arroubos de uma loucura quase romântica.
Sentiu-se gótica, como se pudesse conjugar feminilidade e byronismo. Via-se raptada, tomada por especulações que coravam suas faces vítreas. E pensou, com ardor de familiaridade enfim descoberta, nas infindáveis fêmeas de Zeus.
Leto, Europa, Dânae. Via-se mesmo entre dores, parindo - não deuses civilizadamente olímpicos, mas sim Titãs e Ciclopes. Mãe primeva, teuctônica toda vida, em seu trono de ferro e níquel.
Uns olhos escuros faiscaram para o seu lado. Não, esse não era o olhar de Zeus, o pater, conservador em toda a sua potência de deus macho.
Hades. O nome surgiu como blasfêmia, quase como um vômito, involuntário. E lhe deu prazer. Via-se disputada, mãe e homem, pelo único prêmio de seu belo corpo.
Sim, era belo. Padrões gregos, gritantemente perfeita. Bela, bela, bela. Como um vaso. Um vaso de terracota, levando água e vinho, alternadamente.
Como que para quebrar a perfeição da descoberta em tempo certo de que se era mulher e perfeita, sentiu os passos masculinos de um sapato italiano atrás de si.
- Hades ! - pensou, entre gritos.
Virou-se, a despeito do torcicolo que flamejou abaixo de seu cérebro. E, contra o ridículo da situação, descobriu um rosto como o dela, branco, puro, talhado como que por um Michelangelo, e tão renascentista que o nome dele não poderia ser outro senão David.
O seu igual em sentido oposto. E tudo o que esperava era um ser disforme, com patas de cavalo xucro, ou bode satírico que corresse a perseguir suas pegadas de ninfa.
Ou Hades. A sua parte escura, lacrada em seu crânio de Pandora, a sua parcela de dor, seu quinhão de sofrimento feminil.
E no lugar do frenesi de uma mulher que merece sentir-se miserável, davam-lhe um espelho até os pés. A diferença: os sapatos. Pretos, austeros, mas que não serviam para esmagar corações.
Uma lágrima caiu como prenúncio de dor. Será que nunca seria suficientemente raptável? Onde estaria Pã, a bulinar com sua flauta seus ouvidos e o que mais fosse reentrância nela?
Doeu-lhe esse tatear por sua condição de Eva. Não pelo Éden perdido, mas por descobrir que Adão era barro, ela que não havia assistido à criação dele. Argila bem-vestida.
Nada sentiu pelo David, que fosse atá-los para sempre. Nem mesmo curiosidade quanto ao fato de serem destinados um ao outro. A raiva de não ter Hades curvava-se em resignação e hímen intacto.
Seu gêmeo provavelmente sentia o mesmo. Sabia que os deuses mais perfeitos não procuravam nem raptavam mulheres. Bastavam-se, seres contemplando no lago turvo dos olhos alheios sua própria beleza andrógina.
Hefesto. Que fosse o coxo, mas que fosse seu! Feito de ferro e fogo, ourives da frivolidade e cândido forjador da beleza de outrem. Como seria feliz com os colares e calores do pouco homem claudicante!
Não mais imaginou o deus imperfeito. Em nada ajudava mirar aquele plácido acabamento, esculpido a cinzel. Nada havia a completar em David: n-a-d-a. Chatice divina.
E nela, tantas ausências, nunca mais banho-maria! Adeus, belo monte Olimpo, pastores invisíveis, verdes prados! Habitava o Orco, mas não reinava. Bela ânfora grega, querendo ser gente!
O David havia sumido. Era perfeito o suficiente para não se importar com circunstâncias tão curiosas, como a de ter encontrado a sua alma gêmea. Ou apenas o corpo gêmeo, extensão umbilical da sua própria infância.
Sentiu o alívio de voltar a ser única, ainda que coisa! Coisificada, pacífica como o pilar de um templo, estática como qualquer deusa. E tudo por cinco minutos de atraso.