domingo, 31 de outubro de 2010

Descoberta

Aquele não era o seu horário habitual.

Ela o notava pelos rostos alienígenas dos passantes, pelo ar seco que não comunicava brisa, pelo duro bater dos dentes que expunham ameaças e dentaduras.

Cinco minutos de atraso. Era só, mas ela, em sua impossível inocência de mocinha, não via, com seus olhos de estátua grega intocada, que aí estava todo o perigo. Ela não o conhecia, não haviam sido apresentados, no templo marmóreo onde vivia.

E agora esses olhos, que a faziam recuar e gemer sem razão. E ela, filha de um sereno classicismo, agitava pela primeira vez seu coração árcade, em arroubos de uma loucura quase romântica.

Sentiu-se gótica, como se pudesse conjugar feminilidade e byronismo. Via-se raptada, tomada por especulações que coravam suas faces vítreas. E pensou, com ardor de familiaridade enfim descoberta, nas infindáveis fêmeas de Zeus.

Leto, Europa, Dânae. Via-se mesmo entre dores, parindo - não deuses civilizadamente olímpicos, mas sim Titãs e Ciclopes. Mãe primeva, teuctônica toda vida, em seu trono de ferro e níquel.

Uns olhos escuros faiscaram para o seu lado. Não, esse não era o olhar de Zeus, o pater, conservador em toda a sua potência de deus macho.

Hades. O nome surgiu como blasfêmia, quase como um vômito, involuntário. E lhe deu prazer. Via-se disputada, mãe e homem, pelo único prêmio de seu belo corpo.

Sim, era belo. Padrões gregos, gritantemente perfeita. Bela, bela, bela. Como um vaso. Um vaso de terracota, levando água e vinho, alternadamente.

Como que para quebrar a perfeição da descoberta em tempo certo de que se era mulher e perfeita, sentiu os passos masculinos de um sapato italiano atrás de si.

- Hades ! - pensou, entre gritos.

Virou-se, a despeito do torcicolo que flamejou abaixo de seu cérebro. E, contra o ridículo da situação, descobriu um rosto como o dela, branco, puro, talhado como que por um Michelangelo, e tão renascentista que o nome dele não poderia ser outro senão David.

O seu igual em sentido oposto. E tudo o que esperava era um ser disforme, com patas de cavalo xucro, ou bode satírico que corresse a perseguir suas pegadas de ninfa.

Ou Hades. A sua parte escura, lacrada em seu crânio de Pandora, a sua parcela de dor, seu quinhão de sofrimento feminil.

E no lugar do frenesi de uma mulher que merece sentir-se miserável, davam-lhe um espelho até os pés. A diferença: os sapatos. Pretos, austeros, mas que não serviam para esmagar corações.

Uma lágrima caiu como prenúncio de dor. Será que nunca seria suficientemente raptável? Onde estaria Pã, a bulinar com sua flauta seus ouvidos e o que mais fosse reentrância nela?

Doeu-lhe esse tatear por sua condição de Eva. Não pelo Éden perdido, mas por descobrir que Adão era barro, ela que não havia assistido à criação dele. Argila bem-vestida.

Nada sentiu pelo David, que fosse atá-los para sempre. Nem mesmo curiosidade quanto ao fato de serem destinados um ao outro. A raiva de não ter Hades curvava-se em resignação e hímen intacto.

Seu gêmeo provavelmente sentia o mesmo. Sabia que os deuses mais perfeitos não procuravam nem raptavam mulheres. Bastavam-se, seres contemplando no lago turvo dos olhos alheios sua própria beleza andrógina.

Hefesto. Que fosse o coxo, mas que fosse seu! Feito de ferro e fogo, ourives da frivolidade e cândido forjador da beleza de outrem. Como seria feliz com os colares e calores do pouco homem claudicante!

Não mais imaginou o deus imperfeito. Em nada ajudava mirar aquele plácido acabamento, esculpido a cinzel. Nada havia a completar em David: n-a-d-a. Chatice divina.

E nela, tantas ausências, nunca mais banho-maria! Adeus, belo monte Olimpo, pastores invisíveis, verdes prados! Habitava o Orco, mas não reinava. Bela ânfora grega, querendo ser gente!

O David havia sumido. Era perfeito o suficiente para não se importar com circunstâncias tão curiosas, como a de ter encontrado a sua alma gêmea. Ou apenas o corpo gêmeo, extensão umbilical da sua própria infância.

Sentiu o alívio de voltar a ser única, ainda que coisa! Coisificada, pacífica como o pilar de um templo, estática como qualquer deusa. E tudo por cinco minutos de atraso.


Daniela Asth

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