domingo, 17 de abril de 2011

O bom combate

Assim nos entendemos. Nessa distância teleguiada em que eu te amo e pra você tudo bem. Essa é a lógica, baby, essa é a sequência de tiros que devemos dar um no outro. Sua vez. Outra boca, de aparência razoavelmente coquete, sedutora. Tá valendo. Vai fundo, até a última gota, até o fundo dessa densidade de veneno. Você sempre volta, nos meus sonhos. Me beija as mãos de um jeito meio nojento, como se eu fosse a sua madona. Detesto ser idolatrada. Sou eu a pecadora, chuchu, eu sou a grande devassa dessa história. Não tenho nada pra te oferecer, a não ser a minha vida inteira. É tão bom fingir que te amo. É um jogo em que eu sempre me escondo e me acho, quase uma trepada de velocidade variada. Não me importa o seu ser real, aquele que quer comer estrogonofe e que comenta sobre a merda no banheiro. Me interessa aquele outro, um que eu criei com a sua ajuda, seu malandro sem imaginação. Eu sempre te dava as deixas. Tão engraçado ver você iludido de que me iludia! Eu sei. Eu invariavelmente fico sabendo. Não finja que as palavras têm outra dimensão além daquela pobreza de corte medieval que você me fez. Ridícula simulação. Meus olhos sempre presos nos detalhes que faziam saltar meus sonhos. Como fica fácil te despir, seu bobinho. Debaixo da pele, nada além de um organismo. Tanto faz amar você ou uma planta. Ela, ao menos, não me faz versos espremidos como uma pasta de dentes já no final. Ela tem a decência de me dar sossego e, vez por outra, me dá uma flor. Até duas. É o que basta, tolinho – é direito seu ficar calado. Sou eu quem movimenta o discurso, quem desloca os sentidos, quem cria os artefatos de ler. Quantos poeminhas e florezinhas e musiquinhas e beijinhos e cosquinhas você já fez nela? Quero uma estatística pra desencadear meu ciúme, todo ele motivado pela quantificação. Ciúme em tabelas. Eu me provoco, eu fico no extremo de uma alucinação porque me dá tesão ser assim, completamente desfigurada. Você é uma extensão da necessidade de me ferir. Podia ser você ou um chicote, mas sou muito sensível à dor física. Aproveite a passagem pra esse paraíso em que você sempre se enxerga nos olhos de alguém. Por isso você prefere os olhos castanhos, fundo de maior definição. Indefinida sou eu, que tanto me quis que acabei desesperada pra saltar desse barco sem leme que era o seu amor. Acabei encalhando na costa, mas acidentes acontecem. O salto é o gesto que me invade, que me preenche. Estou presa a essa queda, ela não tem fim na minha possibilidade de pensar o que encontrarei no chão – um colchão ou uma cova. Antes a fratura exposta que ser exposta por você como uma peça inteira, um pedaço nutritivo das suas vontades. Quem disse que não há felicidade na ruptura? Tudo que vale a pena se rasga. Um embrulho, uma fruta, um coração. Tudo é feito pra ser dilacerado um dia. Então, neném, pegue sua faca, prepare suas armas: nossa luta não termina agora.

domingo, 27 de março de 2011

Flanar.

Uma parte grande de mim quer que você morra. Uma parte muito grande de mim tem a sofisticação de o querer morto como um deslize, como um escorrimento, como um desfazimento liquefascente. Uma parte de mim é grande o bastante para vê-lo sumir com gozo, mas outra parte segura na última hora seu rabinho-de-peixe-de-aquário, antes de partir pelo derradeiro ralo. As minhas partes adoram discutir, para chegarem a um desacordo permanente e cíclico, como um orgasmo que você me nega. O ritmo das minhas discussões internas semelha uma cópula. Ganha quem me leva primeiro ao frenesi. Espero. Desespero. Nunca uma chance de me livrar da minha inequívoca caveira. Ela subjaz ao meu discurso, transborda como uma realidade macilenta. Você está no exato lugar em que começo a minha respiração. Sua ausência só pode existir no breve hiato de um suspiro. Ou de um espirro. Preciso de mãos que me tateiem toda, como se precisassem de um mapa. Quero ser um território. Necessárias explorações. Seu trilhar era muito certo, impetuoso, desejava me integrar a seu império. Prefiro o minifúndio. Quero ser uma chácara, um abrigo verde para a calma. Suas entradas e bandeiras me deixavam em lama e sangue. Não, preciso que meus arbustos, água e frutos sejam usados com parcimônia. Deite-se em minha rede. Você não quer, pois seria renunciar ao derradeiro da hora da batalha. Você quer fincar seu mastro, definir padrões. Quero a semente de uma certeza. De uma calma que só um raio de sol fugindo das nuvens molhadas pode permitir. Não quero gelar ossos, mas preciso de um pouco de ausência úmida para aplacar meu abrasamento. Tepidez. Afundar meu corpo um tanto enregelado em um banho-maria. Esse texto era uma vontade de lhe falar, mas acaba sendo a minha opção por mim, sempre. Não tenho como fugir de me querer. E nisso invento o desagrado, o enfado e as imprecisões. O que seria de mim se não fossem as lacunas?

Eros

O tato não é o fato.
Não é a foto.
É autorretrato
feito de muitos tantos
minúsculos bocados.
Centímetros molhados,
milímetros achados
nas trilhas dos pelos
nas peles dos outros.
O tato não é olfato.
É contato direto,
é uma luta de fato
e de direito.
Contrato.
É bordado
tecido ponto a ponto,
de ponta a ponta.
Quando o espelho é quebrado,
o que resta é essa rota,
de olhos vendados.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Trabalho

Tremo de emoção com um pipoqueiro. Um vendedor de miudezas quase me leva às lágrimas. Senhores um tanto autômatos, levando um punhado de sacos de algodão-doce como o balão de gás da infância perdida. Perdidamente apaixonada pelo desenrolar da vida do profissional "liberal", tão preso pelos pés à sobrevivência. É tocante ver sonhos transformados em barracas de limonada, pessoas oferecendo serviços, produtos, bens, duráveis ou não, desejáveis ou não. Maravilhosa a crença de que se pode ofertar tudo, de pasta de dentes a casamentos. O trabalho enriquece um sentimento de superioridade, de necessidade e importância no mundo. A nobreza de ter um propósito; não de ser útil - mas de se sentir encaixado comodamente em uma engrenagem de milhões de peças simbióticas, simples, autorreguláveis, indistintas. Trabalhamos para ser massa, não farinha. E novamente estalo beijos e risos comovidos e envergonhados a quem não pensa nisso por já ter a decência em si. Não - pensar é um ato de coragem: nunca há entrega maior do que na inconsciência. E na eternidade.

Ex-combros

- Não, menina, você não está entendendo. Aquela área ali , do seu coração, está toda interditada. Não está vendo que tudo veio abaixo? Eu sei que você quer salvar algumas coisinhas, mas te garanto: não sobrou nada por lá. Pra que ficar remexendo em tanta lama? Não vai te fazer bem, e você ainda vai pegar doença. Ah, tem uma pessoa desaparecida? Me desculpa ter que te falar, mas a essa altura não tem esperança de encontrar ninguém vivo, não. Menina, não vai, o terreno ainda está instável! Se tudo ruir de novo, são dois que morrem. Pô, foi mal, mas é a verdade. Tá tudo muito feio de se ver. Quando não tiver risco de mais chuva, você volta, combinado? Eu te ajudo a cavar tudo por aí, nós vamos encontrar o corpo. O corpo. Agora eu tenho que te levar pra um abrigo, estão dando ao menos um agasalho e comida por lá. Como é que eu sei que lá também não vai desabar nada? Eu não sei. Só sei que é melhor do que ficar por aqui, olhando pra isso. E lá tem mais gente como você, que também perdeu tudo. Isso... vem. Você vai ver que logo você vai encontrar forças pra reconstruir o que perdeu. Não ficou viva? Não é isso o mais importante? Tanta gente que não teve a mesma sorte que você, para e pensa. Que não teve nem a chance de se defender... na verdade, somos uns sortudos. Olha, e faz favor: se tudo começar a estalar e a trincar e a rachar, vê se tomba pra dentro, que ninguém aguenta mais ver tanto escombro.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Complacente

Nasci na entressafra de uma família numerosa e fértil. Sou irmã do meio. Na escola, a única menina a saber o que era hímen complacente aos 8 anos de idade. Também a pessoa que não soube o que era um xaxim até os 12. Que teve de ser ensinada pelo então namorado, já adulta, a acender isqueiros e tirar guardanapos. Aquela que usou um vestido preto com unhas douradas no casamento da irmã. A que teve seu primeiro veto filmado na festa de 15 anos, também da irmã. De onde nota-se que cerimônias que envolvam minha irmã nunca me favorecem. Que usava calças de bainhas malfeitas, duras, calças-palhaço. A menina que engolia o catarro porque achava que tudo que vinha de dentro dela eram manifestações nojentas demais para o mundo. Ah, as dores de barriga que tive por isso. A boca virgem aos 16, a gordinha de maria-chiquinha pocahontas e gargantilha. Mas deflorei muitos livros sozinha, escondida na biblioteca da escola. Ao lado da máquina de escrever, desbravei, cortando a faca, as páginas ainda grudadas de um Jorge de Lima. Coca-Cola? Não, guaraná. Chocolate? Não, morango. Ou baunilha, sabor idoso de sorvete. Sempre andei com a ala geriátrica. Os velhos sempre gostaram de mim, talvez porque eu também seja uma. A que andava sozinha pelo mato, para ouvir os barulhos da noite. Cantava árias no chuveiro e achava que tinha vivido durante o Renascimento em algum belo lugar do Velho Mundo. A que começou a ler "O livro dos espíritos" na semana mesma de sua crisma, e que nunca mais se viu como católica, embora a interessassem as figuras de santos e personagens bíblicos. Com mais inspiração, seria profeta doido-varrida. Mas gosto muito de banhos e de TV a cabo. No dia da minha formatura, não pude entrar no baile que paguei o ano todo. Era uma terça-feira. De quem eram as flores do Dia dos Namorados? Certamente não minhas. Assim como não me pertencia vaga em time nenhum da educação física. Aquela que mandou uma carta, na primeira semana de aula da escola nova, declarando-se a um menino e tentando seduzi-lo, anunciando sua predileção por estrogonofe. A que, aos quinze anos, ganhou um perfume usado de sua avó, e dois parentes na sala de estar. A defunta do bullying na escola, quando não existia esse nome para alguma coisa que de resto era considerada normal e muito inocente. A gordinha devoradora de carniça pós-Biotônico Fontoura. A que não tem par em nada deste mundo e vive procurando criar uma sequência mental em que as letras se perfilem, sabendo de pronto se formam pares ou se fica alguma letra sobressalente. Como eu. Em desuso como um trema. Aquela que, ainda assim, segue dando estrelinhas e rindo sem dentes, apontando com olhos brilhantes as lindas cachoeiras do caminho.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

À moda do Pessoa

Um dia, em algum lugar
Serviram-me amor
Em colher de chá.

Mas como se pode servir amor em colher,
E ainda por cima de chá?
Amor não é homeopatia,
Não se usa em conta-gotas.

Disse ao garçom que amor não se serve em porção tão pequenina,
Porque ademais nem é invenção francesa...
Respondeu-me que era o que tinha na cozinha,
Era tudo que podiam me ofertar...

Amor em colher de chá!

Saí feito um foguete daquele restaurante
Tão metido à besta
E estou procurando um lugar onde se possa
Comer o amor com as mãos,
Até se poder lambuzar.