Amanhã é dia de relembrar os mortos. Meu morto não pode ser lembrado, pois nunca é esquecido.
Há mortos que habitam esse outro tipo de condomínio, e mortos que seguem morando no mesmo lugar, embora pareçam estar a muito mais que sete palmos de terra. Há mortos com lápides, lousas que inscrevem datas de nascimento e morte. Outros mortos jazem em qualquer página de agenda, bilhetes, fotos. Mortos mais do que vivos, para os quais não se levam flores, mas que já deixaram flores, hoje ressequidas, restos mortais que nunca encontram a decomposição.
Com alguns mortos, se pode tentar estabelecer contato; de outros, nenhum médium poderá psicografar uma palavra. São mortos do silêncio, habitam as criptas da indiferença e nos fazem comungar da frieza e da gelidez de sua mansão de ódio.
Abro sua urna, onde estão as cinzas de quando éramos vivos. Todas aquelas letras já borradas de minhas lágrimas são como vermes que teimam em entrar em minha carne. Quem se decompõe sou eu, ao tentar soprar sobre nós alguma alma, alguma vida.
O meu morto continua mudando, e está tão morto que talvez eu não pudesse reconhecê-lo. Tento reconstruir você, como se fosse Frankenstein. Sua pele morena, suas costas largas, suas pernas finas, seus cabelos anelados. Falta, no entanto, a faísca que atinja e ilumine esse momento, que faça com que você salte novamente para meus braços e sorria. Seus ossos, luz da minha vida, nunca mais os verei se exibindo para mim em forma de dentes. Meu morto se recusa a mostrar para mim sua parte mais íntima.
Acendo uma vela para todos os santos celebrados neste dia. Inclusive para aquela Nossa Senhora Desatadora dos Nós, cujo santinho você veio me ofertar um dia, quando ainda se preocupava com a minha salvação. Esse nó, no entanto, que aperta todo o meu tórax e me divide em duas, a cabeça que não para de girar e o corpo paralisado, esse nó ela nunca poderá remover. Nenhum santo me dará a redenção.
Amanhã os vivos terão a consolação de se reencontrar com seus finados. Entre eles, uma fina camada de terra e de além. Você, meu morto querido, vai continuar chovendo dentro de mim, mesmo depois que o feriado acabe e as nuvens se dissipem. Vai continuar mostrando que não precisa de minhas rezas, flores ou velas. Seguirá cada vez mais feliz, mais confiante, mais reconstruído. Sua nova vida já começa, uma nova infância se inaugura.
Eu, no entanto, continuarei a ser aquele anjo de mármore, cada vez mais escurecido pelo tempo, que se debruça sobre o seu jazigo.
Descanse em paz, amor, que eu permanecerei sendo o seu cemitério.
Nossa, que lindo!
ResponderExcluirvamos enterrando e florescendo momentos... e lembrar, sempre, constituindo e indo.