domingo, 7 de novembro de 2010
Escolha
Havia duas árvores, em um quintal, bem próximas uma da outra. A da esquerda era um jacarandá e a da direita, uma jabuticabeira. Entre elas, estava o dono do quintal, um jovem de 25 anos.
Ele olhou para o jacarandá, a árvore mais antiga. Quando chegou àquela casa, a árvore já estava lá e se destacava em um quintal que, de resto, estava abandonado. Amou desde o início aquela forma retorcida e cheia de florezinhas roxas que pareciam trompetes. A casca da árvore, naquela época, era lisa, e as florações eram exuberantes a cada primavera.
A sombra não era muita, mas o então menino passava horas sob a copa rala, encantado com a sua propriedade. Brincava de gude, caçava formigas, colhia folhas caídas para o seu álbum... Permanecia a maior parte da tarde junto ao jacarandá.
No inverno, quando a árvore ficava nua e ressequida, o menino enfeitava-a com os badulaques que fazia: pedaços de retalho e fitas enroscavam-se nos galhos e papel crepom era enrolado no tronco. Assim, sua árvore querida nunca deixava de ter beleza e encanto.
Passou-se muito tempo. O menino cresceu, tornou-se um jovem de robustez moral e inúmeras florações internas. Agigantava-se em graça e conhecimento. O jacarandá não parecia mais tão alto e ele conseguia abraçar sem problemas o tronco.
Era o jacarandá que diminuía. Apequenava-se nas florações, que vinham menos esfuziantes e mais tímidas. A casca começou a enrugar e escurecer. O ex-menino, no entanto, tinha-lhe o mesmo carinho e até mais, pois conhecia tão a fundo sua amada árvore que podia, mesmo sem nunca tê-las visto, saber exatamente o aspecto das raízes.
Nesse meio tempo, o quintal havia recebido outros habitantes. Vieram roseiras, um limoeiro, uma porção de margaridas e uma jabuticabeira, plantada a poucos passos de seu jacarandá. Não lhe dava maior atenção, pois demorou para a arvorezinha crescer.
Um dia, porém, sentado à sombra da árvore mais velha, o jovem notou na que estava defronte umas bolotinhas pretas, maduras, cheias de viço e brilho. Eram as primeiras jabuticabas! Cobriam todo o tronco fino da planta e convidavam a boca a molhar-se de vontade.
O jovem ficou tentado a provar aqueles olhinhos morenos. Nunca havia comido daquelas frutinhas. Sua árvore não tinha frutos comestíveis, embora as cascas duras que os contivessem tivessem sido objeto de muitas de suas brincadeiras infantis.
Mas sentia agora que o jacarandá ficara lhe devendo esse prazer. Nunca tinha colhido frutas no pé, improvisando na camisa um cesto rústico que abrigasse suas doces conquistas. Não se lambuzara, não ficara com dor de barriga de tanto excesso e tanta fartura.
Não quis de imediato provar as jabuticabas. Esperou um entardecer e, um tanto a medo, furtou a sua primeira bolinha preta. Fechou-a com força entre as mãos e, ainda a medo, foi estourá-la entre seus dentes quando já estava dentro do seu quarto.
Ploc! Nunca havia sentido uma coisa semelhante em sua boca. Romper aquela fruta era quase um ritual, e percebeu que aquela pequena fenda que se abrira na casca, deixando a polpa curiosa aparecer e escorrer pela garganta, era sinônimo de rupturas maiores.
Não deixou mais de colher as frutas. Ainda precisava, no entanto, esconder-se no seu quarto para concentrar toda a delícia daquele instante. Voluptuosamente escolhia quantidades cada vez maiores, porções negras que se amontoavam agora nas duas mãos, que já não podiam ser fechadas.
Não tinha mais olhos para o jacarandá. No entanto, sabia-se agradecido pelos momentos todos de sua meninice, em que lhe fora um grande amigo. A jabuticabeira acenava sempre, mas as raízes do jacarandá pareciam ter se infiltrado em seu próprio coração.
Entre as árvores, o dono do quintal. À sua esquerda, a solidez do passado, a soma de sua história. À sua direita, o susto, o gozo, as possibilidades.
Sabia que era necessário escolher. Não podia possuir duas árvores, não saberia viver esse trânsito, ainda que fossem necessários poucos passos. Seu corpo finito só podia abrigar-se em uma das sombras. Uma árvore oferecia contemplação, ornamento. A outra podia ser trazida para dentro de si, no deleite dos seus frutos.
Era hora. O ex-menino já sabia. Acariciou a casca vincada da sua árvore mais antiga, despedindo-se com um abraço. Enterrou a seus pés umas tantas fitas, moedas, gudes e outras quantas miudezas. Antes de cobrir seus tesouros com um pouco de terra, ousou procurar as raízes da mais velha, tocá-las por uma vez. Não as encontrou, tão fundas estavam. Regou a terra ao redor com suas lágrimas, pela última vez. Abraçou o tronco, colheu uma derradeira flor roxa e passou a cobrir o chão do quintal com incontáveis cascas pretas.
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cá estou eu, correndo nesse jardim das tuas letras, emocionado de te ler dessa forma. Obrigado por me amar assim. Você é grande parte dessa minha felicidade! Te amo, Dadá!
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