sábado, 6 de novembro de 2010

Estou possuída das palavras. Agora elas me vêm quando querem, sem cerimônia, se atiram contra mim, puxam meus pés nas calçadas, me fazem tropeçar. Antes eu não as via, não as escutava: eram como figurações na paisagem, elementos de composição da cena. De uns tempos pra cá, com o peito rasgado de cima a baixo em uma operação cardíaca mais do que forçada, elas ousaram enxergar naquele buraco um abrigo. E, não satisfeitas de fazer do oco do meu peito uma oca, povoaram também minha mente, meus músculos.
É um inferno o que passei a viver. Não podem ver-me sentada, a ver um filme estúpido qualquer. Não me deixam ficar distraída, tomando o café e simplesmente olhando bestificada a paisagem. Não permitem que eu leia um capítulo do que quer que seja até o fim.
Despem-se. Fazem barulhos, estalando a língua. Mostram-me seus sons, seus gemidos. Obrigam-me a olhar as danças obscenas de suas orquestras de letras. Piscam, gracejam, gargalham. As palavras gozam. Vibram, ondulam, cintilam. Riscam os céus, enquanto tento pentear os cabelos.
Mas têm predileção pelos meus banhos. E é com angústia que as vejo escorrer junto com as rajadas quentes do chuveiro. Tentam afogar-me e fazem do meu asseio uma tortura, e é com estardalhaço que saio correndo a pegar qualquer papel e tinta, que se borrem com um tanto de água, doce e salgada.
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Fujam das palavras. Façam filhos, viagens, compras. Não olhem para os lados. Evitem muito especialmente olhar para o céu e enxergar nos fenômenos atmosféricos e nos corpos celestes qualquer emanação de poesia. Recomendo especial atenção com velórios, nascimentos e literatura francesa.
Importante: nunca se apaixonem. Isso é um conselho e uma exortação. Não cometam a imprudência de olhar no fundo dos olhos de alguém. É ali que elas esperam, prontas para saltar diretamente para seus lábios e dedos, provocando uma comichão que azul de metileno algum curará.
Ouçam o despertador, interrompam o sonho onde estiver, essa incubadora de palavras. Sufoque-as antes que possam dar o primeiro choro, ou elas farão com que se acorde na alta madrugada, com os olhos vidrados e as mãos tremendo a exigir qualquer superfície, seja um guardanapo ou um bilhete da loteria.
Virginia Woolf. Mário de Sá-Carneiro. Ana Cristina César. Não sejam como eles. Não sintam como eles. Não escrevam como eles.
Ou escrevam, escravos.

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