Olhar ao redor era como reaprender a enxergar. Uns poucos dias que estivera de olhos fechados foram suficientes para se desacostumar com a trivial visão. Tivera outras visões, sim. Fulgurações de paisagens interiores, dunas de inquietação e desertos de sobrevivência. Perdeu-se entre tantos vales de incompletude que retornar à superfície das horas era como renascer. Saía de um coma induzido e, primeiramente, enxergou os borrões que os olhos conseguem distinguir depois de tanta treva. Seriam aquelas cores diluídas menos reais do que os contornos firmes do hábito? Por que as sombras tinham de ser menos verazes, somente por serem fugidias?
Ouvia vozes ao acordar, que chamavam docemente. Desperta. Levanta-te e anda. Não olhe pra trás.
Por fim, acordou. E agora os borrões se tornavam cada vez mais objetos circunscritos, limitações da realidade que lhe parecia muito maior. Mas era bom reencontrar os objetos, olhar para fora e poder enxergar com coragem que uma cama era apenas e imensamente uma cama. Saudou cortinas, tapetes, armários.
O momento de levantar-se foi festa, quando os braços se libertaram do leito e puderam esticar-se em gozo de espreguiçar. O corpo, seu amigo. Tinha se esquecido dele e até mesmo o atacado, como se fosse seu grande mal. Era o contrário: seu corpo a salvava daquele abismo tão pungente da falta de bases. Foi por isso que, antes de levantar-se, fincou bem os pés no chão e sentiu o frio do piso, preenchendo toda a sola e os espaços entre os dedos. Logo os pés ficaram roxos e desandou a espirrar.
Somente seu corpo, fábrica de secreções e desejos, poderia lhe dotar de tantos gozos. Espirros, sono, orgasmos. Corpo tão querido quando pedia, por meio de barulhos e protestos, um pouco de alimento, de água, de calor. Tão bom ficar arrepiada. Onde estava não havia arrepios ou tremores. Era um só ondular das vagas violentas do vazio. Vazio pleno de sentimentos.
Preferia ficar boiando entre as sensações. Gostava de tirar férias do espírito e poder consorciar-se com a alma. E então bastava sentir frio, fome, sono. E poder satisfazer os desejos do corpo a libertava.
Pentear os cabelos, por exemplo. Um repertório incrível para os sentidos: o cheiro de xampu nos fios, a maciez que eles tinham perfilados, o brilho. Eram bonitos sob o sol, gostava de ver como os raios o atravessavam e lhe davam uma aparência diáfana. Roubava do sol artifícios de beleza.
O banho era o momento de que mais gostava. Água quente, som do chuveiro trabalhando, vapor de água. Cheiro de sabonete, xampu, a toalha roçando o corpo cheio de respingos. Era o momento de tocar sua pele, sentir sua firmeza e ser feliz por desfrutar da fugacidade. Saber-se provisoriamente jovem aumentava sua vitalidade.
O festim das roupas. Escolher entre seda, algodão, renda. Perfume. Batom, deslizando pelos lábios que tantas vezes gostava de tocar com as pontas dos dedos. Borrou-se de cores e cheiros porque podia, porque estava viva e porque desejava sempre muito, sempre tudo, sempre mais.
E, pegando a bolsa, abriu as portas há muito trancadas e ousou andar novamente sob o céu.
Lindo!
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