segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Sentido

Olhar ao redor era como reaprender a enxergar. Uns poucos dias que estivera de olhos fechados foram suficientes para se desacostumar com a trivial visão. Tivera outras visões, sim. Fulgurações de paisagens interiores, dunas de inquietação e desertos de sobrevivência. Perdeu-se entre tantos vales de incompletude que retornar à superfície das horas era como renascer. Saía de um coma induzido e, primeiramente, enxergou os borrões que os olhos conseguem distinguir depois de tanta treva. Seriam aquelas cores diluídas menos reais do que os contornos firmes do hábito? Por que as sombras tinham de ser menos verazes, somente por serem fugidias?
Ouvia vozes ao acordar, que chamavam docemente. Desperta. Levanta-te e anda. Não olhe pra trás.
Por fim, acordou. E agora os borrões se tornavam cada vez mais objetos circunscritos, limitações da realidade que lhe parecia muito maior. Mas era bom reencontrar os objetos, olhar para fora e poder enxergar com coragem que uma cama era apenas e imensamente uma cama. Saudou cortinas, tapetes, armários.
O momento de levantar-se foi festa, quando os braços se libertaram do leito e puderam esticar-se em gozo de espreguiçar. O corpo, seu amigo. Tinha se esquecido dele e até mesmo o atacado, como se fosse seu grande mal. Era o contrário: seu corpo a salvava daquele abismo tão pungente da falta de bases. Foi por isso que, antes de levantar-se, fincou bem os pés no chão e sentiu o frio do piso, preenchendo toda a sola e os espaços entre os dedos. Logo os pés ficaram roxos e desandou a espirrar.
Somente seu corpo, fábrica de secreções e desejos, poderia lhe dotar de tantos gozos. Espirros, sono, orgasmos. Corpo tão querido quando pedia, por meio de barulhos e protestos, um pouco de alimento, de água, de calor. Tão bom ficar arrepiada. Onde estava não havia arrepios ou tremores. Era um só ondular das vagas violentas do vazio. Vazio pleno de sentimentos.
Preferia ficar boiando entre as sensações. Gostava de tirar férias do espírito e poder consorciar-se com a alma. E então bastava sentir frio, fome, sono. E poder satisfazer os desejos do corpo a libertava.
Pentear os cabelos, por exemplo. Um repertório incrível para os sentidos: o cheiro de xampu nos fios, a maciez que eles tinham perfilados, o brilho. Eram bonitos sob o sol, gostava de ver como os raios o atravessavam e lhe davam uma aparência diáfana. Roubava do sol artifícios de beleza.
O banho era o momento de que mais gostava. Água quente, som do chuveiro trabalhando, vapor de água. Cheiro de sabonete, xampu, a toalha roçando o corpo cheio de respingos. Era o momento de tocar sua pele, sentir sua firmeza e ser feliz por desfrutar da fugacidade. Saber-se provisoriamente jovem aumentava sua vitalidade.
O festim das roupas. Escolher entre seda, algodão, renda. Perfume. Batom, deslizando pelos lábios que tantas vezes gostava de tocar com as pontas dos dedos. Borrou-se de cores e cheiros porque podia, porque estava viva e porque desejava sempre muito, sempre tudo, sempre mais.
E, pegando a bolsa, abriu as portas há muito trancadas e ousou andar novamente sob o céu.

domingo, 7 de novembro de 2010

Escolha


Havia duas árvores, em um quintal, bem próximas uma da outra. A da esquerda era um jacarandá e a da direita, uma jabuticabeira. Entre elas, estava o dono do quintal, um jovem de 25 anos.
Ele olhou para o jacarandá, a árvore mais antiga. Quando chegou àquela casa, a árvore já estava lá e se destacava em um quintal que, de resto, estava abandonado. Amou desde o início aquela forma retorcida e cheia de florezinhas roxas que pareciam trompetes. A casca da árvore, naquela época, era lisa, e as florações eram exuberantes a cada primavera.
A sombra não era muita, mas o então menino passava horas sob a copa rala, encantado com a sua propriedade. Brincava de gude, caçava formigas, colhia folhas caídas para o seu álbum... Permanecia a maior parte da tarde junto ao jacarandá.
No inverno, quando a árvore ficava nua e ressequida, o menino enfeitava-a com os badulaques que fazia: pedaços de retalho e fitas enroscavam-se nos galhos e papel crepom era enrolado no tronco. Assim, sua árvore querida nunca deixava de ter beleza e encanto.
Passou-se muito tempo. O menino cresceu, tornou-se um jovem de robustez moral e inúmeras florações internas. Agigantava-se em graça e conhecimento. O jacarandá não parecia mais tão alto e ele conseguia abraçar sem problemas o tronco.
Era o jacarandá que diminuía. Apequenava-se nas florações, que vinham menos esfuziantes e mais tímidas. A casca começou a enrugar e escurecer. O ex-menino, no entanto, tinha-lhe o mesmo carinho e até mais, pois conhecia tão a fundo sua amada árvore que podia, mesmo sem nunca tê-las visto, saber exatamente o aspecto das raízes.
Nesse meio tempo, o quintal havia recebido outros habitantes. Vieram roseiras, um limoeiro, uma porção de margaridas e uma jabuticabeira, plantada a poucos passos de seu jacarandá. Não lhe dava maior atenção, pois demorou para a arvorezinha crescer.
Um dia, porém, sentado à sombra da árvore mais velha, o jovem notou na que estava defronte umas bolotinhas pretas, maduras, cheias de viço e brilho. Eram as primeiras jabuticabas! Cobriam todo o tronco fino da planta e convidavam a boca a molhar-se de vontade.
O jovem ficou tentado a provar aqueles olhinhos morenos. Nunca havia comido daquelas frutinhas. Sua árvore não tinha frutos comestíveis, embora as cascas duras que os contivessem tivessem sido objeto de muitas de suas brincadeiras infantis.
Mas sentia agora que o jacarandá ficara lhe devendo esse prazer. Nunca tinha colhido frutas no pé, improvisando na camisa um cesto rústico que abrigasse suas doces conquistas. Não se lambuzara, não ficara com dor de barriga de tanto excesso e tanta fartura.
Não quis de imediato provar as jabuticabas. Esperou um entardecer e, um tanto a medo, furtou a sua primeira bolinha preta. Fechou-a com força entre as mãos e, ainda a medo, foi estourá-la entre seus dentes quando já estava dentro do seu quarto.
Ploc! Nunca havia sentido uma coisa semelhante em sua boca. Romper aquela fruta era quase um ritual, e percebeu que aquela pequena fenda que se abrira na casca, deixando a polpa curiosa aparecer e escorrer pela garganta, era sinônimo de rupturas maiores.
Não deixou mais de colher as frutas. Ainda precisava, no entanto, esconder-se no seu quarto para concentrar toda a delícia daquele instante. Voluptuosamente escolhia quantidades cada vez maiores, porções negras que se amontoavam agora nas duas mãos, que já não podiam ser fechadas.
Não tinha mais olhos para o jacarandá. No entanto, sabia-se agradecido pelos momentos todos de sua meninice, em que lhe fora um grande amigo. A jabuticabeira acenava sempre, mas as raízes do jacarandá pareciam ter se infiltrado em seu próprio coração.
Entre as árvores, o dono do quintal. À sua esquerda, a solidez do passado, a soma de sua história. À sua direita, o susto, o gozo, as possibilidades.
Sabia que era necessário escolher. Não podia possuir duas árvores, não saberia viver esse trânsito, ainda que fossem necessários poucos passos. Seu corpo finito só podia abrigar-se em uma das sombras. Uma árvore oferecia contemplação, ornamento. A outra podia ser trazida para dentro de si, no deleite dos seus frutos.
Era hora. O ex-menino já sabia. Acariciou a casca vincada da sua árvore mais antiga, despedindo-se com um abraço. Enterrou a seus pés umas tantas fitas, moedas, gudes e outras quantas miudezas. Antes de cobrir seus tesouros com um pouco de terra, ousou procurar as raízes da mais velha, tocá-las por uma vez. Não as encontrou, tão fundas estavam. Regou a terra ao redor com suas lágrimas, pela última vez. Abraçou o tronco, colheu uma derradeira flor roxa e passou a cobrir o chão do quintal com incontáveis cascas pretas.

sábado, 6 de novembro de 2010

Estou possuída das palavras. Agora elas me vêm quando querem, sem cerimônia, se atiram contra mim, puxam meus pés nas calçadas, me fazem tropeçar. Antes eu não as via, não as escutava: eram como figurações na paisagem, elementos de composição da cena. De uns tempos pra cá, com o peito rasgado de cima a baixo em uma operação cardíaca mais do que forçada, elas ousaram enxergar naquele buraco um abrigo. E, não satisfeitas de fazer do oco do meu peito uma oca, povoaram também minha mente, meus músculos.
É um inferno o que passei a viver. Não podem ver-me sentada, a ver um filme estúpido qualquer. Não me deixam ficar distraída, tomando o café e simplesmente olhando bestificada a paisagem. Não permitem que eu leia um capítulo do que quer que seja até o fim.
Despem-se. Fazem barulhos, estalando a língua. Mostram-me seus sons, seus gemidos. Obrigam-me a olhar as danças obscenas de suas orquestras de letras. Piscam, gracejam, gargalham. As palavras gozam. Vibram, ondulam, cintilam. Riscam os céus, enquanto tento pentear os cabelos.
Mas têm predileção pelos meus banhos. E é com angústia que as vejo escorrer junto com as rajadas quentes do chuveiro. Tentam afogar-me e fazem do meu asseio uma tortura, e é com estardalhaço que saio correndo a pegar qualquer papel e tinta, que se borrem com um tanto de água, doce e salgada.
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Fujam das palavras. Façam filhos, viagens, compras. Não olhem para os lados. Evitem muito especialmente olhar para o céu e enxergar nos fenômenos atmosféricos e nos corpos celestes qualquer emanação de poesia. Recomendo especial atenção com velórios, nascimentos e literatura francesa.
Importante: nunca se apaixonem. Isso é um conselho e uma exortação. Não cometam a imprudência de olhar no fundo dos olhos de alguém. É ali que elas esperam, prontas para saltar diretamente para seus lábios e dedos, provocando uma comichão que azul de metileno algum curará.
Ouçam o despertador, interrompam o sonho onde estiver, essa incubadora de palavras. Sufoque-as antes que possam dar o primeiro choro, ou elas farão com que se acorde na alta madrugada, com os olhos vidrados e as mãos tremendo a exigir qualquer superfície, seja um guardanapo ou um bilhete da loteria.
Virginia Woolf. Mário de Sá-Carneiro. Ana Cristina César. Não sejam como eles. Não sintam como eles. Não escrevam como eles.
Ou escrevam, escravos.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dia dos Mortos

Amanhã é dia de relembrar os mortos. Meu morto não pode ser lembrado, pois nunca é esquecido.
Há mortos que habitam esse outro tipo de condomínio, e mortos que seguem morando no mesmo lugar, embora pareçam estar a muito mais que sete palmos de terra. Há mortos com lápides, lousas que inscrevem datas de nascimento e morte. Outros mortos jazem em qualquer página de agenda, bilhetes, fotos. Mortos mais do que vivos, para os quais não se levam flores, mas que já deixaram flores, hoje ressequidas, restos mortais que nunca encontram a decomposição.
Com alguns mortos, se pode tentar estabelecer contato; de outros, nenhum médium poderá psicografar uma palavra. São mortos do silêncio, habitam as criptas da indiferença e nos fazem comungar da frieza e da gelidez de sua mansão de ódio.
Abro sua urna, onde estão as cinzas de quando éramos vivos. Todas aquelas letras já borradas de minhas lágrimas são como vermes que teimam em entrar em minha carne. Quem se decompõe sou eu, ao tentar soprar sobre nós alguma alma, alguma vida.
O meu morto continua mudando, e está tão morto que talvez eu não pudesse reconhecê-lo. Tento reconstruir você, como se fosse Frankenstein. Sua pele morena, suas costas largas, suas pernas finas, seus cabelos anelados. Falta, no entanto, a faísca que atinja e ilumine esse momento, que faça com que você salte novamente para meus braços e sorria. Seus ossos, luz da minha vida, nunca mais os verei se exibindo para mim em forma de dentes. Meu morto se recusa a mostrar para mim sua parte mais íntima.
Acendo uma vela para todos os santos celebrados neste dia. Inclusive para aquela Nossa Senhora Desatadora dos Nós, cujo santinho você veio me ofertar um dia, quando ainda se preocupava com a minha salvação. Esse nó, no entanto, que aperta todo o meu tórax e me divide em duas, a cabeça que não para de girar e o corpo paralisado, esse nó ela nunca poderá remover. Nenhum santo me dará a redenção.
Amanhã os vivos terão a consolação de se reencontrar com seus finados. Entre eles, uma fina camada de terra e de além. Você, meu morto querido, vai continuar chovendo dentro de mim, mesmo depois que o feriado acabe e as nuvens se dissipem. Vai continuar mostrando que não precisa de minhas rezas, flores ou velas. Seguirá cada vez mais feliz, mais confiante, mais reconstruído. Sua nova vida já começa, uma nova infância se inaugura.
Eu, no entanto, continuarei a ser aquele anjo de mármore, cada vez mais escurecido pelo tempo, que se debruça sobre o seu jazigo.
Descanse em paz, amor, que eu permanecerei sendo o seu cemitério.
Quero ser todos os poetas do mundo
porque não posso morar em mim.
Sinto inveja de quem se consome por inteiro.
Eu não.
Fica sempre esse braseiro como uma fogueira confiante
dentro do mais bruto inverno,
crepitando, crepitando.
Meus pensamentos são banais como
tudo o mais que é complexo.
Sinto turvas minhas palavras, e não as posso beber.
Quem goza dentro do meu verbo?
Há noites tão solitárias em minha mente que somente
o lobo inconformado dos meus remorsos pode andar
por entre tantas ervas amargas.
Os relógios me mostram que objetos podem ser
incalculavelmente objetivos.
Por que existem tantas prisões que não me aceitam?
Os carcereiros desviam o olhar,
fingem alheamentos, esperam minha sombra passar.
Quando chegar o grande dia
em que tudo tenha um sentido
e haja toda a redenção
já terei partido,
me partido em mil pedaços
dentro da minha irresoluta e irrefreável
imperfeição.

5/9/10