quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Complacente

Nasci na entressafra de uma família numerosa e fértil. Sou irmã do meio. Na escola, a única menina a saber o que era hímen complacente aos 8 anos de idade. Também a pessoa que não soube o que era um xaxim até os 12. Que teve de ser ensinada pelo então namorado, já adulta, a acender isqueiros e tirar guardanapos. Aquela que usou um vestido preto com unhas douradas no casamento da irmã. A que teve seu primeiro veto filmado na festa de 15 anos, também da irmã. De onde nota-se que cerimônias que envolvam minha irmã nunca me favorecem. Que usava calças de bainhas malfeitas, duras, calças-palhaço. A menina que engolia o catarro porque achava que tudo que vinha de dentro dela eram manifestações nojentas demais para o mundo. Ah, as dores de barriga que tive por isso. A boca virgem aos 16, a gordinha de maria-chiquinha pocahontas e gargantilha. Mas deflorei muitos livros sozinha, escondida na biblioteca da escola. Ao lado da máquina de escrever, desbravei, cortando a faca, as páginas ainda grudadas de um Jorge de Lima. Coca-Cola? Não, guaraná. Chocolate? Não, morango. Ou baunilha, sabor idoso de sorvete. Sempre andei com a ala geriátrica. Os velhos sempre gostaram de mim, talvez porque eu também seja uma. A que andava sozinha pelo mato, para ouvir os barulhos da noite. Cantava árias no chuveiro e achava que tinha vivido durante o Renascimento em algum belo lugar do Velho Mundo. A que começou a ler "O livro dos espíritos" na semana mesma de sua crisma, e que nunca mais se viu como católica, embora a interessassem as figuras de santos e personagens bíblicos. Com mais inspiração, seria profeta doido-varrida. Mas gosto muito de banhos e de TV a cabo. No dia da minha formatura, não pude entrar no baile que paguei o ano todo. Era uma terça-feira. De quem eram as flores do Dia dos Namorados? Certamente não minhas. Assim como não me pertencia vaga em time nenhum da educação física. Aquela que mandou uma carta, na primeira semana de aula da escola nova, declarando-se a um menino e tentando seduzi-lo, anunciando sua predileção por estrogonofe. A que, aos quinze anos, ganhou um perfume usado de sua avó, e dois parentes na sala de estar. A defunta do bullying na escola, quando não existia esse nome para alguma coisa que de resto era considerada normal e muito inocente. A gordinha devoradora de carniça pós-Biotônico Fontoura. A que não tem par em nada deste mundo e vive procurando criar uma sequência mental em que as letras se perfilem, sabendo de pronto se formam pares ou se fica alguma letra sobressalente. Como eu. Em desuso como um trema. Aquela que, ainda assim, segue dando estrelinhas e rindo sem dentes, apontando com olhos brilhantes as lindas cachoeiras do caminho.

Um comentário:

  1. que incrível! Uma personagem de filme! Fiquei te imaginando como uma profeta doido-varrida. Seria engraçado demais. Cordoeira ia virar Conselheira Daniela.

    Só não fique achando que é um sapato sem par. Shakespeare já deve ter reencarnado e está esperando por você.

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