domingo, 31 de outubro de 2010

Era preciso

ERA PRECISO


Navegar é preciso/Viver não é preciso.


Era preciso causar dor. Era preciso se causar dor. Era preciso rasgar fotos, destroçar o coração, pôr fogo nos móveis. Era preciso tomar veneno, sentir as chagas purulentas se abrirem, passar fome severa, sentir hipotermia. Era preciso se jogar da ponte, deixar um bilhete no bolso, ser resgatado e socorrido com uma respiração boca a boca. Era preciso sentir dor de dente, dever o aluguel, ter a luz e a água cortadas. Era preciso cortar a pele, fazer vários cortes no antebraço, furar a almofada com a tesoura. Era preciso beber álcool, vomitar e entrar em coma alcoolico, dirigir embriagado às quatro da manhã. Era preciso entrar para a igreja, chorar em convulsão, temer as penas do inferno. Era preciso passar pelo inferno, sentir o fogo interno, sentir o frio imponderável. Era preciso, era muito preciso, gostar de alguém. Era preciso levar fora, levar bolo, levar tiro. Era preciso montar guarda na porta da casa do amor, chorar com os parentes do amor, ser expulso a pontapés pelo amor. Era preciso parar no hospital algumas vezes, ficar no soro de tanta saudade, não querer comer e sentir a levitação que vem do jejum. Era preciso ser traído, era preciso flagrar a traição, era preciso ouvir as desculpas. Era preciso perdoar, era preciso ficar confuso, era preciso entrar em desespero. Era preciso ser despejado, era preciso estar desempregado, era preciso estar na fila do SUS. Era preciso perder alguém, sabidamente para sempre, inexoravelmente nunca mais ver alguém. Era preciso dever a agiotas, era preciso ouvir os idiotas, era preciso conviver. Era preciso sorrir nos bares, dançar nas festas, mergulhar nas piscinas. Era preciso contar piadas, contar fofocas, chorar abafado no travesseiro de tanto esforço. Era preciso desejar alguma coisa na vitrine, era preciso não poder comprar, era preciso ver outros usufruindo. Era preciso poder comprar, era preciso comprar em excesso, era preciso sentir o vazio. Era preciso lutar, era preciso saber-se inábil, era preciso ser derrotado. Era preciso ter primos felizes, era preciso ter irmãos felizes, era preciso ter amigos felizes. Era preciso não ser feliz. Era preciso ter quebrado o braço, ter quebrado os dentes, ter quebrado a cara. Era preciso ser recusado no emprego, era preciso espalhar currículos, era preciso andar no ônibus cheio. Era preciso fumaça, era preciso calor, era preciso o cansaço. Era preciso o divórcio, era preciso advogados, era preciso freqüentar sessões de conciliação. Era preciso não haver conciliação. Era preciso ouvir os risos dos conhecidos, era preciso saber-se cochichado, era preciso olhar para o chão de tanta inadequação. Era preciso passar as noites de sábado em casa. Era preciso trafegar invisível pelos Natais, pelos Anos-Novos, pelos Dias dos Namorados. Era preciso ir ao cinema e imaginar-se morto. Era preciso frequentar velórios. Era preciso enterrar mortos, era preciso exumar mortos. Era preciso registrar queixas em delegacias, era preciso retirar queixas sob ameaças. Era preciso ir a cartórios, era preciso ter carimbos, era preciso assinaturas. Era preciso cair do cavalo, cair da bicicleta, cair da moto. Era preciso ter um parente afogado. Era preciso ficar preso no engarrafamento, no banheiro, no elevador. Era preciso fazer terapia, era preciso usar florais de Bach, era preciso tentar a acupuntura. Era preciso ver filme após filme, era preciso comentar os filmes, era preciso rever os filmes. Era preciso assinar cheques, assinar documentos, assinar seu nome na árvore. Era preciso engordar de tanta raiva. Era preciso manter a mente controlada, era preciso saber relaxar, saber respirar. Era preciso inaugurar um vício na meia-idade. Era preciso manter os vícios novos e os antigos. Era preciso ser manco, ser cardíaco, ser míope. Era preciso corrigir os dentes, os olhos, a postura. Era preciso cortar, tingir, hidratar, esticar, repicar, relaxar os cabelos. Era preciso ser pego com pornografia, era preciso passar vergonhas grandes e públicas, era preciso ser visto nu. Era preciso sonhar com unicórnios, babar no travesseiro, ter mau hálito. Era preciso sentir diarreia, cólicas, dor de garganta. Era preciso ter sido internado, ter sido operado, ter sido reanimado. Era preciso receber a aposentadoria, o parente distante, a extrema-unção. Era preciso se despedir, se arrepender, se desesperar. Era preciso ser consolado, enxugado, desligado. Era preciso ser cremado. Era preciso escrever. Viver, isso era muito impreciso.



Daniela Asth

Descoberta

Aquele não era o seu horário habitual.

Ela o notava pelos rostos alienígenas dos passantes, pelo ar seco que não comunicava brisa, pelo duro bater dos dentes que expunham ameaças e dentaduras.

Cinco minutos de atraso. Era só, mas ela, em sua impossível inocência de mocinha, não via, com seus olhos de estátua grega intocada, que aí estava todo o perigo. Ela não o conhecia, não haviam sido apresentados, no templo marmóreo onde vivia.

E agora esses olhos, que a faziam recuar e gemer sem razão. E ela, filha de um sereno classicismo, agitava pela primeira vez seu coração árcade, em arroubos de uma loucura quase romântica.

Sentiu-se gótica, como se pudesse conjugar feminilidade e byronismo. Via-se raptada, tomada por especulações que coravam suas faces vítreas. E pensou, com ardor de familiaridade enfim descoberta, nas infindáveis fêmeas de Zeus.

Leto, Europa, Dânae. Via-se mesmo entre dores, parindo - não deuses civilizadamente olímpicos, mas sim Titãs e Ciclopes. Mãe primeva, teuctônica toda vida, em seu trono de ferro e níquel.

Uns olhos escuros faiscaram para o seu lado. Não, esse não era o olhar de Zeus, o pater, conservador em toda a sua potência de deus macho.

Hades. O nome surgiu como blasfêmia, quase como um vômito, involuntário. E lhe deu prazer. Via-se disputada, mãe e homem, pelo único prêmio de seu belo corpo.

Sim, era belo. Padrões gregos, gritantemente perfeita. Bela, bela, bela. Como um vaso. Um vaso de terracota, levando água e vinho, alternadamente.

Como que para quebrar a perfeição da descoberta em tempo certo de que se era mulher e perfeita, sentiu os passos masculinos de um sapato italiano atrás de si.

- Hades ! - pensou, entre gritos.

Virou-se, a despeito do torcicolo que flamejou abaixo de seu cérebro. E, contra o ridículo da situação, descobriu um rosto como o dela, branco, puro, talhado como que por um Michelangelo, e tão renascentista que o nome dele não poderia ser outro senão David.

O seu igual em sentido oposto. E tudo o que esperava era um ser disforme, com patas de cavalo xucro, ou bode satírico que corresse a perseguir suas pegadas de ninfa.

Ou Hades. A sua parte escura, lacrada em seu crânio de Pandora, a sua parcela de dor, seu quinhão de sofrimento feminil.

E no lugar do frenesi de uma mulher que merece sentir-se miserável, davam-lhe um espelho até os pés. A diferença: os sapatos. Pretos, austeros, mas que não serviam para esmagar corações.

Uma lágrima caiu como prenúncio de dor. Será que nunca seria suficientemente raptável? Onde estaria Pã, a bulinar com sua flauta seus ouvidos e o que mais fosse reentrância nela?

Doeu-lhe esse tatear por sua condição de Eva. Não pelo Éden perdido, mas por descobrir que Adão era barro, ela que não havia assistido à criação dele. Argila bem-vestida.

Nada sentiu pelo David, que fosse atá-los para sempre. Nem mesmo curiosidade quanto ao fato de serem destinados um ao outro. A raiva de não ter Hades curvava-se em resignação e hímen intacto.

Seu gêmeo provavelmente sentia o mesmo. Sabia que os deuses mais perfeitos não procuravam nem raptavam mulheres. Bastavam-se, seres contemplando no lago turvo dos olhos alheios sua própria beleza andrógina.

Hefesto. Que fosse o coxo, mas que fosse seu! Feito de ferro e fogo, ourives da frivolidade e cândido forjador da beleza de outrem. Como seria feliz com os colares e calores do pouco homem claudicante!

Não mais imaginou o deus imperfeito. Em nada ajudava mirar aquele plácido acabamento, esculpido a cinzel. Nada havia a completar em David: n-a-d-a. Chatice divina.

E nela, tantas ausências, nunca mais banho-maria! Adeus, belo monte Olimpo, pastores invisíveis, verdes prados! Habitava o Orco, mas não reinava. Bela ânfora grega, querendo ser gente!

O David havia sumido. Era perfeito o suficiente para não se importar com circunstâncias tão curiosas, como a de ter encontrado a sua alma gêmea. Ou apenas o corpo gêmeo, extensão umbilical da sua própria infância.

Sentiu o alívio de voltar a ser única, ainda que coisa! Coisificada, pacífica como o pilar de um templo, estática como qualquer deusa. E tudo por cinco minutos de atraso.


Daniela Asth