quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Trabalho

Tremo de emoção com um pipoqueiro. Um vendedor de miudezas quase me leva às lágrimas. Senhores um tanto autômatos, levando um punhado de sacos de algodão-doce como o balão de gás da infância perdida. Perdidamente apaixonada pelo desenrolar da vida do profissional "liberal", tão preso pelos pés à sobrevivência. É tocante ver sonhos transformados em barracas de limonada, pessoas oferecendo serviços, produtos, bens, duráveis ou não, desejáveis ou não. Maravilhosa a crença de que se pode ofertar tudo, de pasta de dentes a casamentos. O trabalho enriquece um sentimento de superioridade, de necessidade e importância no mundo. A nobreza de ter um propósito; não de ser útil - mas de se sentir encaixado comodamente em uma engrenagem de milhões de peças simbióticas, simples, autorreguláveis, indistintas. Trabalhamos para ser massa, não farinha. E novamente estalo beijos e risos comovidos e envergonhados a quem não pensa nisso por já ter a decência em si. Não - pensar é um ato de coragem: nunca há entrega maior do que na inconsciência. E na eternidade.

Ex-combros

- Não, menina, você não está entendendo. Aquela área ali , do seu coração, está toda interditada. Não está vendo que tudo veio abaixo? Eu sei que você quer salvar algumas coisinhas, mas te garanto: não sobrou nada por lá. Pra que ficar remexendo em tanta lama? Não vai te fazer bem, e você ainda vai pegar doença. Ah, tem uma pessoa desaparecida? Me desculpa ter que te falar, mas a essa altura não tem esperança de encontrar ninguém vivo, não. Menina, não vai, o terreno ainda está instável! Se tudo ruir de novo, são dois que morrem. Pô, foi mal, mas é a verdade. Tá tudo muito feio de se ver. Quando não tiver risco de mais chuva, você volta, combinado? Eu te ajudo a cavar tudo por aí, nós vamos encontrar o corpo. O corpo. Agora eu tenho que te levar pra um abrigo, estão dando ao menos um agasalho e comida por lá. Como é que eu sei que lá também não vai desabar nada? Eu não sei. Só sei que é melhor do que ficar por aqui, olhando pra isso. E lá tem mais gente como você, que também perdeu tudo. Isso... vem. Você vai ver que logo você vai encontrar forças pra reconstruir o que perdeu. Não ficou viva? Não é isso o mais importante? Tanta gente que não teve a mesma sorte que você, para e pensa. Que não teve nem a chance de se defender... na verdade, somos uns sortudos. Olha, e faz favor: se tudo começar a estalar e a trincar e a rachar, vê se tomba pra dentro, que ninguém aguenta mais ver tanto escombro.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Complacente

Nasci na entressafra de uma família numerosa e fértil. Sou irmã do meio. Na escola, a única menina a saber o que era hímen complacente aos 8 anos de idade. Também a pessoa que não soube o que era um xaxim até os 12. Que teve de ser ensinada pelo então namorado, já adulta, a acender isqueiros e tirar guardanapos. Aquela que usou um vestido preto com unhas douradas no casamento da irmã. A que teve seu primeiro veto filmado na festa de 15 anos, também da irmã. De onde nota-se que cerimônias que envolvam minha irmã nunca me favorecem. Que usava calças de bainhas malfeitas, duras, calças-palhaço. A menina que engolia o catarro porque achava que tudo que vinha de dentro dela eram manifestações nojentas demais para o mundo. Ah, as dores de barriga que tive por isso. A boca virgem aos 16, a gordinha de maria-chiquinha pocahontas e gargantilha. Mas deflorei muitos livros sozinha, escondida na biblioteca da escola. Ao lado da máquina de escrever, desbravei, cortando a faca, as páginas ainda grudadas de um Jorge de Lima. Coca-Cola? Não, guaraná. Chocolate? Não, morango. Ou baunilha, sabor idoso de sorvete. Sempre andei com a ala geriátrica. Os velhos sempre gostaram de mim, talvez porque eu também seja uma. A que andava sozinha pelo mato, para ouvir os barulhos da noite. Cantava árias no chuveiro e achava que tinha vivido durante o Renascimento em algum belo lugar do Velho Mundo. A que começou a ler "O livro dos espíritos" na semana mesma de sua crisma, e que nunca mais se viu como católica, embora a interessassem as figuras de santos e personagens bíblicos. Com mais inspiração, seria profeta doido-varrida. Mas gosto muito de banhos e de TV a cabo. No dia da minha formatura, não pude entrar no baile que paguei o ano todo. Era uma terça-feira. De quem eram as flores do Dia dos Namorados? Certamente não minhas. Assim como não me pertencia vaga em time nenhum da educação física. Aquela que mandou uma carta, na primeira semana de aula da escola nova, declarando-se a um menino e tentando seduzi-lo, anunciando sua predileção por estrogonofe. A que, aos quinze anos, ganhou um perfume usado de sua avó, e dois parentes na sala de estar. A defunta do bullying na escola, quando não existia esse nome para alguma coisa que de resto era considerada normal e muito inocente. A gordinha devoradora de carniça pós-Biotônico Fontoura. A que não tem par em nada deste mundo e vive procurando criar uma sequência mental em que as letras se perfilem, sabendo de pronto se formam pares ou se fica alguma letra sobressalente. Como eu. Em desuso como um trema. Aquela que, ainda assim, segue dando estrelinhas e rindo sem dentes, apontando com olhos brilhantes as lindas cachoeiras do caminho.